Jerson Kelman, doutor em Hidrologia e Recursos Hídricos

Com passagens pelo comando da ANA, Aneel e Sabesp, engenheiro fala sobre os impactos do marco regulatório no setor de saneamento e as perspectivas para o avanço dos serviços de água e esgoto no país.
Jerson-Kelman-(1)

Nosso entrevistado desta  semana é o doutor em Hidrologia e Recursos Hídricos Jerson Kelman, que já foi presidente da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e da Sabesp, além de diretor-geral na Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).

Em entrevista à Saneas Online, o especialista expõe sua visão sobre os impactos do novo Marco Legal no setor de saneamento e os desafios para o avanço dos serviços de água e esgoto no país.

Além disso, ele comenta sobre a criação do Museu Água de São Paulo, iniciativa da Associação dos Engenheiros da Sabesp – AESabesp, para valorizar a história do saneamento e conscientizar a sociedade sobre a importância do uso racional da água e a preservação do meio ambiente: “É um bom projeto”, avalia Kelman.

Confira, a seguir, a entrevista completa:

Saneas Online – O Novo Marco Legal do Saneamento está trazendo uma série de mudanças para o setor a fim de alcançar a universalização dos serviços até dezembro de 2033. Qual sua avaliação sobre os impactos deste marco regulatório no saneamento e para a sociedade?

Jerson Kelman – Antes de responder essa pergunta, é preciso compreender que há poucas empresas de saneamento sob controle público que não dependem de repasses do Tesouro. A Sabesp é uma delas, certamente o ponto mais fora da curva. Sendo muito eficiente, não recebe recursos do governo. Ao contrário, repassa recursos ao Tesouro Estadual sob forma de dividendos. Mas, como disse, trata-se de uma exceção. 

Muitas estatais utilizam os subsídios de forma ineficiente na construção de infraestrutura que nunca termina ou, quando inaugurada, que funciona por pouco tempo por falta de manutenção. Subsídios também são frequentemente direcionados para beneficiar corporações excessivamente numerosas, gozando de benefícios não-usufruídos pela maioria dos trabalhadores. Ou seja, corporações servindo a si próprias e não à população. 

Como é óbvio, esse modelo não dá bons resultados. É só verificar os índices de cobertura do serviço de saneamento. Muito ruins, mesmo quando comparados com países de renda per capita semelhante à nossa. Pior: os tesouros públicos estão exangues e não aguentam mais a sangria.

Nestes casos, é preciso atrair a iniciativa privada para o setor, visando não só o ingresso de capitais, mas também o aumento da produtividade. O novo Marco Legal visa criar um ambiente de segurança jurídica-regulatória para investimentos. Esse marco beneficia não apenas as companhias privadas, mas também as públicas.

Por exemplo, antes do novo marco, um prefeito oportunista poderia fazer uma licitação para escolher um prestador de serviço para substituir a Sabesp, em troca de um pagamento substantivo por esse “privilégio”. Não faltariam empresas privadas – como não faltaram – a se interessar pelo negócio, que lhe permitia tomar controle de um ativo construído pela Sabesp sem ter que pagar um centavo por isso. Claro, cabia ao município indenizar a Sabesp, mas o assunto era judicializado e a Sabesp ficava a ver navios. No novo marco, o prefeito pode até mudar de prestador de serviço, mas quem entra tem que indenizar quem sai.      

Saneas Online – Na sua visão, será possível garantirmos o acesso à água potável e tratamento de esgotos a todos os brasileiros até o prazo estabelecido, em 2033?

Jerson Kelman – Metas são boas quando exequíveis. Dão um senso de missão ao time e ajuda no exercício de práticas de gerenciamento de recursos humanos com base na meritocracia. Mas são muito ruins quando inexequíveis. Se alguém me desafia a correr 6 quilômetros em uma hora, sei que ficarei cansado, mas é perfeitamente exequível. Toparia o desafio e o exercício certamente me faria bem. Se for para correr 12 quilômetros, nem tento. Quero dizer que desafios inexequíveis são desmobilizadores. A meu ver, é o que se embutiu na lei. Lamentavelmente!   

Saneas Online – Como o senhor vê o atual cenário do saneamento e o que precisa ser feito para que possamos avançar na cobertura dos serviços de água e esgoto pelo País, especialmente nas regiões rurais e áreas mais vulneráveis?

Jerson Kelman – As regiões mais vulneráveis são as favelas urbanas, não as comunidades rurais. O que temos que fazer é continuar com programas, como “Água Legal” e “Se Liga na Rede”. Também empregar sempre que indicado a coleta-tratamento em tempo seco. Entre o ótimo (sistema separador-absoluto) e o bom (coleta-tratamento em tempo seco), não devemos escolher o péssimo (deixar tudo como está).

Saneas Online – A AESabesp está desenvolvendo o Museu Água de São Paulo, iniciativa que tem como objetivo preservar a memória do saneamento e conscientizar a população acerca do uso racional da água e da preservação ambiental. Como o senhor avalia a importância deste projeto?

Jerson Kelman – É um bom projeto. Recordo que, quando era presidente da Sabesp, essa ideia ou uma parecida, me foi apresentada para preservar a rica memória de São Paulo nos campos do saneamento e da hidroeletricidade. Gostei, mas estava tão envolvido com o enfrentamento da crise hídrica que, confesso, não sei qual foi o desdobramento. Fico contente que o assunto tenha retornado, com mais força.

Raio X

Jerson Kelman é engenheiro civil, mestre em hidráulica (M.Sc. COPPE-UFRJ) e doutor em Hidrologia e Recursos Hídricos (Ph.D., Colorado State University). Participa dos Conselhos de Administração da Eneva (presidente), Evoltz, Iguá Saneamento e Orizon. Foi o principal dirigente da ABRH (Associação Brasileira de Recursos Hídricos), ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), Grupo Light, Enersul e Sabesp. É professor aposentado da COPPE-UFRJ e autor dos livros “Cheias e Aproveitamentos Hidroelétricos (1987)” e “Desafios do Regulador (2009)”.